domingo, 4 de março de 2018

Se essa casa, se essa casa fosse minha ...

Os juízes do Brasil ameaçam entrar em greve no dia 15 de março próximo. O motivo? Não, não é contra a demora dos processos judiciais, especialmente de condenados cujas penas já foram cumpridas e que ainda estão nas confortáveis instalações penitenciárias nacionais. Ou contra a nomeação de pares, para os supremos tribunais do país, com base em critérios políticos ou inomináveis, ao invés de meritocráticos e técnicos. A greve é em defesa da manutenção do auxílio-moradia, uma ninharia em torno de R$ 4.500,00 mensais que é depositada nas contas-pagamento de nossos magistrados. O auxílio-moradia é uma gratificação salarial que os magistrados (e outros funcionários públicos) recebem para o pagamento de aluguel quando não há imóveis funcionais nas comarcas em que trabalham.

Pesquise que tipo de apartamento você poderia alugar com este dinheiro na Asa Sul de Brasília, por exemplo. Você possivelmente vai encontrar um ótimo três quartos com dois ou três banheiros e uma área entre 120 e 150 metros quadrados. Não me parece ruim, nem mesmo para um juiz federal. E isso em Brasília, que tem um dos metros quadrados mais caros do Brasil. Agora, em Cuiabá, Rio Branco, São Luís, Teresina e Porto Velho, ou mesmo em Belém, Manaus e Recife, você possivelmente encontraria um bom quatro ou cinco quartos pelo mesmo valor, não? No Rio, de onde escrevo, você conseguiria uma cobertura até mesmo na Barra ou Recreio, muito embora não em frente à praia, infelizmente.

É claro que, por tudo isso, a oferta de um auxílio deste tipo (e de outros tipos também) deve considerar algumas características locais, como de infra-estrutura, por exemplo. Mas o problema de fato aparece quando o funcionário público recebe o auxílio já sendo proprietário de imóvel na sua comarca de trabalho. Ou de sessenta imóveis, como é, supostamente, o caso de um magistrado brasileiro. Ou do casal de magistrados que recebe dois auxílios, como se fossem viver em casas separadas. Obviamente, isso traz à discussão questões éticas porque desqualifica a razão primordial da existência do auxílio: quem já tem onde morar, não precisa de auxílio para pagar aluguel.

 Alguns magistrados apontam várias justificativas em favor da manutenção daquilo que muitos consideram um privilégio, mas há uma bem estapafúrdia, que defende que o auxílio compensa uma defasagem salarial histórica. Até mesmo um advogado de porta de cadeia hesitaria em levar um argumento deste à corte. Então, que se faça a greve pelo fim das gratificações e por um aumento salarial que alcance um valor considerado justo pela categoria.

Magistrados têm o poder de julgar cidadãos e uma imensa responsabilidade sobre o destino da vida das pessoas cujos processos cruzam os seus gabinetes. É uma função muito difícil de exercer, quando apoiada em bases morais e éticas sólidas. Algo semelhante à responsabilidade do médico sobre a vida ou morte de seus pacientes. Talvez por isso, tenha se construído uma espécie de senso comum que nos indica que juízes e médicos são seres especiais dotados de grande sabedoria e muito pouco susceptíveis a erros. Afinal, médicos curam mais do que matam. E juízes acertam mais em seus veredictos do que erram. Pelo menos é isso que a relativa normalidade das sociedades nos faz crer, uma vez que as crises são exceções e não a regra.

Mas juízes, médicos, engenheiros, funcionários públicos e privados, marceneiros, mecânicos e o padeiro da esquina; ou seja, todos nós, estamos igualmente submetidos ao imponderável do cotidiano. Eu me esforço para acreditar que nossos magistrados não se consideram pertencentes a uma casta tão especial que mereça privilégios destituídos de mérito e bem justificados. Acho, inclusive, que a formação intelectual deles é suficiente para que apresentem à sociedade razões pelas quais seus salários devam ser corrigidos sem terem que recorrer a desvios de finalidades de gratificações. Mas, para o caso de haver magistrados que se considerem especiais, vale indicar a leitura de A morte de Ivan Ilitch, de Tolstói (1828-1910). O conde e escritor russo é mais conhecido por suas obras monumentais, tais como Anna Kariênina e Guerra e Paz, bem diferentes da narrativa curta indicada aqui. No romance, Ivan Ilitch é um magistrado competente e de grande reputação na Rússia czarista que só começa a refletir sobre questões éticas e filosóficas durante uma doença grave, que acabaria levando-o à morte, como consequência de uma corriqueira queda dentro de sua própria casa. A queda ocorre quando Ivan se põe a decorar a nova casa sob os auspícios de uma ajuda de custo, ou auxílio, de três mil e quinhentos rublos devido à sua realocação para uma magistratura numa comarca fora da capital.

Como eu mencionei, o imponderável e o patético do cotidiano afeta todos nós. Ivan se considerava um bom filho, um bom pai, um bom marido, um bom magistrado e, por isso, um injustiçado pelo destino. Mas não conseguia se ver como aquilo que realmente era: um ser humano como outro qualquer. Que tipo de queda nossos magistrados estão almejando para começarem a refletir sobre questões éticas e morais? A rigor, eles não precisam procurar. A história de Ivan Ilitch nos faz crer que a vida é capaz de providenciar essas quedas, de um modo ou de outro.

Até mais.

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